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Lula e os Estados Unidos

 

Nada mais previsível que a boa química resultante do encontro inicial dos presidentes Lula e Bush, ocorrido nesta semana. A embaixadora americana definiu-a com franqueza incomum, ao justificá-la pelo fato de nenhum dos dois ser um intelectual. O que, de outra parte, explica também o complexo de inferioridade maldisfarçado que o americano simplório sempre demonstrou pelo sofisticado Fernando Henrique, e a antipatia prevalecente entre ambos.


O problema é serem as divergências que separam o Brasil e os Estados Unidos, sobretudo no âmbito comercial, ásperas e intratáveis como o cacto de Manuel Bandeira. E que não podem ser resolvidas com posturas de relações públicas.


Dentre elas, sobressai o projeto da Alca, único interesse de vulto que os americanos mantêm, hoje, com relação ao Brasil. Eles o propõem como a panacéia destinada a assegurar o desenvolvimento e a democracia na América Latina. Mas que inviabilizaria o Mercosul - iniciativa de integração sul-americana a que o nosso presidente eleito já declarou conferir prioridade central -, cuja tarifa externa comum seria eliminada pela adesão à Alca.


Esta é apresentada como visando instituir o regime de livre comércio, através da supressão de barreiras alfandegárias. Sabe-se, porém, que aquelas, de fato muito baixas nos Estados Unidos, estão longe de constituir os instrumentos de que os americanos dispõem para proteger, como protegem, o seu mercado, através do regime de quotas, das declarações unilaterais de dumping, de precondições fitossanitárias e dos subsídios agrícolas.


A Autorização para Promoção do Comércio (TPA), recém-aprovada pelo Congresso dos Estados Unidos, é nos apresentada como a providência que faltava para a criação da Alca. Mas a TPA reserva 350 produtos "sensíveis" - isto é, aqueles em que a produção americana se encontra em desvantagem competitiva -, no tocante aos quais o Representante do Comércio (o mesmo que recomendou ao Brasil negociar com a Antártida, se não estivéssemos satisfeitos com a Alca) deverá consultar as comissões de Agricultura e de Comércio da Câmara e do Senado sobre "se seria apropriado fazer qualquer concessão adicional, levando em conta o impacto de tal redução na indústria do referido produto nos Estados Unidos".


Ora, a Câmara dos Deputados daquele país já excluiu da pauta da concorrência o aço, açúcar, sucos cítricos, couro, têxteis e outros. E tais obstáculos não podem, legalmente, ser levantados. A lei agrícola recém-aprovada prevê subsídios elevados aos seus produtores até 2011; a importação de uma lista de mercadorias está sujeita à aprovação do Senado; e veda-se a renegociação das leis de defesa comercial.


Então, que autoridade negociadora é esta? Nesse caso, o poder Executivo dos Estados

Unidos não deveria negociar com o Brasil, porém com o seu poder Legislativo, para induzi-lo a aceitar a supressão das barreiras não-tarifárias e das quotas de importação, o que Bush não fará, por motivos óbvios.


As barreiras congressuais decorrem de lobbies parlamentares poderosos, de influência eleitoral decisiva. Apenas para exemplificar: os interesses da Flórida, que bloqueiam a importação desimpedida dos sucos cítricos brasileiros. E, dentro do sistema eleitoral americano, foi o pleito na Flórida, acusado de fraudes e validado por um voto partidário da Suprema Corte, que permitiu a eleição do atual presidente.


Por tudo isso, não deveríamos estimular a Alca, nos termos ora em pauta. Na sua vigência, o déficit comercial brasileiro com os Estados Unidos se expandiria, e as nossas exportações para o Canadá e a América Latina não teriam maior incremento, inclusive por causa da concorrência americana.


A agenda para implementá-la, que os Estados Unidos tentam impor ao resto do continente, não se resume à remoção de barreiras restritivas ao comércio, mas inclui temas como serviços, compras governamentais, investimentos e propriedade intelectual. Sua abrangência, caso se concretizasse nos termos propostos pelos americanos, seria de amplitude capaz de inviabilizar a execução de projetos autônomos de desenvolvimento entre nós - objetivo declarado do futuro Governo Lula.




Jornal do Commercio (Rio de Janeiro - RJ) em 12/12/2002

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro - RJ) em, 12/12/2002