Em uma aula aberta, dentro da Mostra Internacional de Arte Contemporânea (Miac), no último sábado (18), a escritora Ana Maria Gonçalves convidou o público a refletir sobre o conceito de tempo a partir de experiências pessoais, tradições afro-brasileiras e a obra de pensadores que dialogam com a ancestralidade. O encontro ocorreu no auditório lotado do Instituto Ling, em Porto Alegre. A atividade foi especialmente preparada para o encerramento dos seminários promovidos Miac, que tem como tema esse ano Tempo dos Corpos. A programação da Mostra segue até domingo (26).
Autora do premiado romance Um defeito de cor, Gonçalves partiu da noção de “tempo espiralar”, conceito desenvolvido pela pesquisadora Leda Maria Martins, para discutir como o corpo, a arte e a ancestralidade operam de forma simultânea entre passado, presente e futuro. “O tempo espiralar é o único tipo de tempo capaz de conter os que já foram, os que ainda estão aqui e os que estão por vir. Todos coexistem nesse vértice que gira continuamente e pode ser acessado por cada um de nós”, afirmou.
Para ela, a questão do tempo é um tema difícil, mas ao mesmo tempo fascinante, especialmente a partir da pandemia, quando, pontua, vivemos uma breve suspensão de tempo. “Era um tempo de espera, de incerteza, muito diferente do que vínhamos vivendo antes, e que transformou tudo depois. Até hoje falo dos tempos de antes e depois da pandemia: não sabemos se se passaram cinco, dez ou 15 anos. Aquilo foi um marco”, disse Ana Maria, lembrando como o isolamento também trouxe a oportunidade de observar a passagem do tempo, entrando na menopausa e refletindo sobre “uma outra métrica do tempo.”
O candomblé e uma outra lógica do cuidado
Logo após a pandemia, a escritora iniciou-se em uma casa de candomblé, experiência que ampliou ainda mais sua percepção temporal. “A primeira coisa que se tira é o relógio. Eu estava acostumada a andar de relógio o tempo inteiro e tive que aprender a contar o tempo a partir de uma outra lógica de cuidado. Entendia que era hora de acordar, hora de dormir, através do cuidado das pessoas que estavam ali para cuidar de mim. Nossa filosofia é sempre uma filosofia de comunidade, de tempo presente e de cuidado de toda uma comunidade”, explicou.
Ana Maria compartilhou vivências ligadas ao contato com a natureza e à sacralidade no candomblé. Ao se mudar para a ilha de Itaparica, para mergulhar no livro Um defeito de cor, deparou-se com construções antigas sustentadas por raízes da gameleira branca, árvore sagrada da religião.
“Ela representa o orixá chamado Iroko na tradição Ketu, mas conhecido como Tempo ou Kitembo pelos povos de Angola e Congo. É tido como o primeiro filho de Oxalá e se veste de branco. Essa árvore, assim como a presença de bandeiras ou laços brancos nos terreiros de Salvador, mostra como o tempo está sempre presente. Há um ditado que diz: ‘A árvore é tempo, mas tempo não é a árvore’. Nem toda árvore é sacralizada, embora toda árvore tenha sua vida considerada sagrada.”
A escritora leu também o Itã de Iroko, retirado do livro A Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi, no qual o orixá castiga uma mãe que não cumpre sua promessa de entregar um filho. A narrativa ilustra como passado, presente e futuro se entrelaçam na tradição. “O tempo passa, e os eventos da história se atualizam no presente, mostrando a conexão entre ancestralidade e existência contemporânea.”
Leda Maria Martins e o tempo em espiral
A reflexão sobre o tempo foi aprofundada a partir de dois pensadores: Leda Maria Martins, professora da UFMG, e Muniz Sodré.
Martins, especialista em performance e corpo, inspira o conceito de “tempo espiral”, que, como destacou Ana Maria, é capaz de conter os que já se foram, os que estão e os que ainda virão. “Ancestralidade para a gente não remete à ideia de passado, não remete à ideia de alguém que necessariamente é biológica. O ancestral trata o ancestral como fonte, e como fonte está sempre jorrando, algo que nos atualiza, nos expande e nos prepara também para sermos parte dessa grande fonte jorradora de ancestralidade para as gerações que ainda estão para vir. Não tem absolutamente nada a ver com o passado. Por isso que a ancestralidade é vanguarda, é para frente.”
Gonçalves conectou o conceito de tempo espiral à experiência artística, relatando seu trabalho no musical Pretoper Itamar, sobre Itamar Assumpção. “Não queríamos contar a vida de forma linear. A ideia foi que Itamar não tinha morrido, mas ido para o futuro. Inspirados por Leda, pensamos que o tempo espiral pode conter o passado, o presente e o futuro, acessível a todos. Criamos um personagem, Neguléu, que incorpora essas ideias em cena, refletindo sobre o tempo e a memória.”
Em trechos inspirados nas reflexões de Leda, a escritora leu: “Medir o tempo como se ele não pudesse existir fora do que o mede. O tempo só é tempo no acontecimento. A memória é o passado, a espera é o futuro, e a atenção é o presente. São os três vértices do tempo. Tudo é processo, experiência, nada é atemporal. Dar um fim é inaugurar um começo. O passado, fundado no presente, sempre está por vir. E ele é como um manto que cobre tudo, salpicado de intervalos, pausas e silêncios.”
Muniz Sodré e a filosofia do sentir
A autora também recorreu à filosofia de matriz africana de Muniz Sodré, especialmente ao conceito de dialogia, que difere do diálogo convencional. “A dialogia não é conversa. É uma compenetração de saberes, um vai e vem que, cavando e friccionando, faz a palavra acontecer junto da ação. É a paixão de viver que dá sentido às coisas. A palavra é mágica, profetiza. Para os Nagôs, a paixão é pulsão de vida, que reflete na direção transcendente da existência. Uma filosofia é, portanto, um espelhamento crítico da paixão da vida, que nos leva a refletir sobre questões essenciais de vida e morte.”
Identidade, memória e resistência
A fala de Gonçalves percorreu também questões de identidade negra, memória e resistência. De acordo com ela, Um defeito de cor foi a sua certidão de nascimento como mulher negra. “Foi entender de onde venho para compreender o que é ser uma pessoa negra neste país. E, como na tradição afro-brasileira, ‘Exu matou um pássaro ontem com a pedra que jogou hoje’. É a reconstrução do passado a partir do presente, descobrindo e afirmando a própria existência.”
Ao longo da aula, a escritora mostrou como o tempo, a ancestralidade e a filosofia africana se entrelaçam com a memória, a arte e a experiência coletiva: um convite a pensar o tempo de maneira não linear, espiral e profundamente conectada às raízes culturais e à comunidade.
Para Gonçalves, o sentir é a forma de presença na totalidade das coisas e dos seres. “O sentir é o corpo humano enquanto compreensão primordial do outro. Pelo sentir no corpo, o homem não está somente no mundo, mas o mundo está nele. O homem é o mundo, é um corpo que está ali para cumprir seu destino, para fazer a viagem no mundo, para imaginar destino”, explicou.
Segundo ela, dentro da cosmogonia nagô abordada por Sodré, destino não é uma promessa futura, mas uma experiência de percurso e travessia no espaço e no tempo, realizada no presente.
“Dentro, por exemplo, de uma filosofia cristã, você tem a ideia de uma promessa de paraíso: se se comportar bem aqui, vai ganhar o paraíso. Isso não existe dentro de uma cosmogonia nagô. O paraíso é aqui e agora, vivendo junto com os orixás. É uma filosofia de vida, de viver junto com os teus orixás, no teu ori, na tua cabeça, no aqui e agora. Resolvemos problemas do dia a dia. São problemas muito terrenos, individuais ou coletivos, pensando nessa ideia de corpos sensíveis, mas sempre nesse momento presente”, afirmou.
Gonçalves também falou sobre a alegria como categoria metafísica, distinta do amor cristão. “O culto negro não é um culto do amor universal, mas um culto da alegria. E essa alegria não é apenas festiva. É uma categoria fundadora, assim como, para o cristianismo, a ideia de amor. Alegria é quando você se encontra flutuando, como se estivesse nas nuvens. A alegria é a afinação perfeita do mundo, a harmonia do corpo com o universo”, explicou, citando o termo latino hilaritas, ligado ao riso e à leveza.
Saberes de mulheres negras e presença coletiva
A escritora compartilhou ainda reflexões sobre a transferência de saberes entre mulheres negras. “Não é uma história que eu tivesse vivido, mas uma história que estava no meu DNA. De todos os óvulos já nascerem com a gente, já temos todas as possibilidades de vida que podemos criar. E isso é passado de mulher para mulher. Foi algo muito forte para mim escrever essa história do ponto de vista das mulheres, de estar junto com todo mundo nessa luta. É um processo coletivo”, disse.
Gonçalves também abordou experiências pessoais em Salvador, relacionadas à pesquisa para seus livros. “Eu morei na Bahia duas vezes. A primeira, quando estava fazendo pesquisa para o livro, e a segunda, em 2014. Andando pela cidade, falava com meus amigos: ‘Nossa, esse prédio aqui é novo’. Nada era absolutamente novo. Eu conhecia tanto a cidade do século XIX, que está no livro, que a Salvador de agora quase não existia. E existiu através desse outro olhar”, relatou.
Representatividade e produção de presença
Ao falar de ser a primeira mulher na Academia Brasileira de Letras, a escritora recordou a importância de Conceição Evaristo nessa trajetória. Nesse sentido, sobre representatividade, afirmou que ela é importante, mas não suficiente. “Se a primeira é mais uma, não sou a única, não quero ser a única. A representatividade valeu durante muito tempo para assumir determinados lugares, mas hoje representatividade não basta. Hoje eu quero produzir presença. É produzir presença e estar junto dos pares”, afirmou.
Ao final do encontro, leu trechos da música Oração ao Tempo, de Caetano Veloso, e trouxe uma reflexão poética sobre o corpo e a relação com os outros. “Todo corpo é a metade possível de um atlas. Pensando nessa possibilidade de dialogia com outros corpos, porque a gente é só metade. Onde está o outro mundo? Onde se complementa?”
Matéria na íntegra: https://www.brasildefato.com.br/2025/10/21/o-tempo-espiralar-e-o-unico-capaz-de-conter-os-que-ja-foram-os-que-estao-e-os-que-virao-reflete-ana-maria-goncalves/
22/10/2025