O avanço acelerado da inteligência artificial, que já resulta em livros inteiramente produzidos por máquinas, não intimida o escritor amazonense Milton Hatoum, um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea. “Não é preciso IA para escrever livro medíocre”, afirma.
Nesta semana, o autor ganhou destaque ao se candidatar a uma vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL), instituição que reúne alguns dos nomes mais importantes da literatura nacional. Favorito à sucessão de Cícero Sandroni, que faleceu na semana passada, Milton Hatoum poderá se tornar o primeiro amazonense a ocupar uma cadeira na Academia, caso seja eleito. A escolha será no dia 14 de agosto.
Para A CRÍTICA, o escritor comentou a atuação da ABL em meio ao conturbado cenário político nacional, destacou a renovação nos quadros da instituição, que agora inclui Fernanda Montenegro, Ailton Krenak e em breve Ana Maria Gonçalves. Descendente de libaneses, criticou a onda anti-imigração nos EUA e na Europa, condenou os ataques de Israel a Gaza e classificou a extrema-direita como uma ameaça à democracia. Confira a entrevista.
O senhor é um dos principais nomes da literatura brasileira. É de Manaus, do Amazonas, do Norte do Brasil. O que lhe levou a se candidatar à ABL, que nunca teve um amazonense como membro?
Alguns amigos da ABL me estimularam a apresentar minha candidatura. Desde 1989, quando publiquei meu primeiro romance, tenho conversado sobre literatura com o público leitor, fora e dentro das escolas e universidades. Interrompi minha carreira acadêmica para me dedicar integralmente à escrita de ficção e de ensaios. O estímulo da candidatura tem a ver com a divulgação e com o estudo da literatura do ponto de vista institucional. É o que pretendo fazer se ingressar na academia, mas do ponto de vista institucional: fortalecer esse lado literário da Academia Brasileira de Letras, levar a ABL às escolas públicas e privadas, universidades, trabalhar com textos, publicação de ensaios e participar eventualmente de projetos. Se for eleito, não ficarei passivo nem ausente. Vou tentar continuar o que tenho feito nessas últimas três décadas. Será uma honra, como primeiro amazonense a ingressar na academia.
O que a sua eleição para uma cadeira da ABL representaria para o senhor, mas também para a literatura da região Norte?
Representaria meu trabalho, meu esforço não só como escritor, mas como tradutor, professor, ensaísta e palestrante. Fiz muitas atividades relacionadas à literatura: publicando romances, contos, crônicas, traduções, e também como professor de literatura.
Acho que é uma homenagem aos meus leitores, sobretudo aos que responderam bem aos meus livros e aos professores que escreveram teses. Há uma pesquisa da professora Juciane Cavalheiro, da Universidade do Estado do Amazonas, sobre teses defendidas: são mais de 80, não só no Brasil. Tudo isso é uma homenagem aos leitores.
Além disso, acho que é um estímulo para escritores e artistas de toda a região. A academia não deve ser vista como instituição sacralizada. Prefiro vê-la como democrática, que irradia saberes, ideias, e estimula escritores a produzir. Para minha cidade e estado, todo escritor pode aspirar ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.
Sua obra trata sobre política, autoritarismo e o senhor sofreu autoexílio. Qual papel enxerga para a ABL no debate político nacional?
A ABL está se renovando. Nos últimos anos entraram artistas e escritores importantes: Fernanda Montenegro, Gilberto Gil, a historiadora Lilia Schwarcz, Eduardo Giannetti, Ailton Krenak, o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto, e agora Ana Maria Gonçalves, a primeira mulher negra na ABL. O perfil da academia está mudando. Sempre há lado conservador nas instituições, e outro mais progressista e aberto a inovações.
Dá para dizer pela sua obra, mas de que lado o senhor se coloca e por quê?
Sempre atuei no lado progressista. Fui contra a ditadura e atuei no movimento estudantil. Mas quando se escreve, não se deve transformar literatura em panfleto ou texto de denúncia – isso empobrece a literatura. Boa literatura não explica nem é peremptória; opera com contradições humanas. Porém, eu jamais escreveria romance a favor do autoritarismo. Na ditadura, instituições são banidas, Poder Judiciário e Legislativo são controlados e a imprensa é censurada. Sou totalmente contra. Tenho ideal de liberdade democrática. Às vezes não precisa ser de esquerda para ser democrata – pode ser liberal com valores democráticos. Infelizmente isso está em baixa com a ascensão da extrema-direita, com quem não há diálogo.
Na semana passada, o STF decidiu que big techs podem ser responsabilizadas por conteúdos criminosos de terceiros. Críticos dizem que isso reduz a liberdade de expressão. Como o senhor vê essa decisão?
A decisão me parece correta. Fake news pode levar à morte, como no caso da cloroquina para covid-19 durante a pandemia. Negacionismo da ciência, calúnias escabrosas contra políticos podem gerar violência. Isso não é liberdade de expressão. O fascismo operava com grandes mentiras que se tornavam verdades. Mentiras escabrosas causam danos morais e físicos. Sou favorável ao controle pelo Judiciário nesses casos.
Há limites para liberdade de expressão no contexto de crescimento de movimentos extremistas que pregam ódio a grupos sociais?
Racismo é crime inafiançável na lei brasileira. Manifestações racistas, nazistas, islamofóbicas e antissemitas devem ser condenadas. Não fazem parte de uma civilidade ou projeto de civilização.
O senhor é filho de libaneses. Como vê a onda de anti-imigração global, fortalecida com a eleição de Trump e de políticos de extrema-direita na Europa?
Refugiados e imigrantes tornaram-se bodes expiatórios de crise econômica. O Brasil sempre acolheu bem imigrantes. Meu pai era imigrante libanês; minha mãe, filha de libaneses. Há milhões de brasileiros de origem árabe, judeus, alguns judeus marroquinos na Amazônia. O Brasil acolheu japoneses, italianos, espanhóis. Agora, governos europeus e americano veem imigrantes como causa da crise, mas a crise está no interior do sistema. A ex-primeira-ministra alemã Angela Merkel disse: “Se não entrarem 500 mil imigrantes por ano na Alemanha, o país para”. Expulsar argelinos da França pararia o país. Franceses não querem fazer trabalhos pesados. Há hipocrisia nisso. O Brasil tem recebido bem refugiados sírios e agora de Gaza.
Sobre Gaza: ataques de Israel continuam sem perspectiva de parar. Quem poderia fazer algo e não faz?
Quem poderia e deveria ter feito há meses era o governo norte-americano. Bastaria um telefonema ao primeiro-ministro de Israel para parar o genocídio. Não foi feito nem por Biden, nem por Trump. Os EUA fornecem material bélico e dinheiro a Israel há décadas. Vejo esse genocídio como combinação de projeto de extermínio na essência da criação de Israel, que desde 1948 expulsa palestinos e ocupa terras. O que aconteceu em 7 de outubro foi crime de guerra. Condeno totalmente a violência do Hamas. Mas a opressão contra palestinos começou antes. O historiador judeu-israelense Ilan Pappé tem o livro Brevíssima História do Conflito Israel-Palestina, que é uma abreviação de um clássico dele, A Limpeza Étnica da Palestina. Milhões de judeus são contra o extermínio, separando judaísmo do sionismo. A Torá condena assassinato de crianças e mulheres. Isso é um projeto ideológico e econômico de ocupação.
Com a transformação digital acelerada, já existem livros 100% produzidos por inteligência artificial sendo vendidos em lojas como a Amazon. Quais impactos isso pode ter na literatura? O senhor vê totalmente como negativo ou a IA tem aspectos positivos?
Para mim não significa muita coisa. A IA pode gerar textos padronizados, mas subjetividade humana, imaginação, sonhos e linguagem com estilo pessoal não são replicáveis artificialmente. Experiência de vida é individual e profundamente humana. Livros de IA serão medianos, medíocres. Há leitores para tudo. Não precisa de IA para escrever livro medíocre. Muitos humanos já o fazem. Há aqueles de autoajuda, receitas de sucesso. Há leituras para tudo, e há leitores para Machado de Assis, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Dostoiévski. A IA não me tira do sério. Não me preocupo.
A educação brasileira tem sofrido, há um tempo, ataques de políticos que pedem a retirada de livros das escolas por considerarem que são ideológicos em um sentido negativo. Como vê isso?
Censurar livros é um dos mandamentos do fascismo. Essa censura ideológica é absurda e é inaceitável. É um dos atos mais fascistas que podem existir. O Hitler baniu livros, baniu milhares de livros. Todo o governo autoritário começa banindo livros, obras de arte, prendendo artistas, escritores, ameaçando a cultura do país. É o projeto de um total obscurantismo.
O senhor viveu a ditadura militar no Brasil e sofreu um autoexílio. Atualmente a Justiça brasileira investiga uma tentativa de golpe em 2022 e ainda há movimentos extremistas se articulando para tomar o poder. A democracia está ameaçada no país?
Eu acho que esse movimento é internacional. O Brasil está presente nisso e a extrema-direita tem força no Brasil. Agora, a nossa atitude deve ser de lutar contra isso e preservar a democracia. Mas o que vi na semana passada, na Avenida Paulista, foi um ato vergonhoso e esvaziado. O ex-presidente será certamente preso. Ele e alguns generais que ameaçaram as instituições. Eu acho que planejar um golpe contra o Estado Democrático de Direito foi uma coisa vergonhosa e o ex-presidente está fora do jogo, embora tenha seus seguidores. Acho que a extrema-direita é muito perigosa para a democracia, porque ela não aceita o democrático. Ela aposta no caos, no golpe de Estado, na violência, nas fake news. Quando você controla as redes sociais e tira as fake news mais escabrosas, violentas e insidiosas, você enfraquece o movimento, porque eles trabalham com isso. Espero que a democracia vença, não necessariamente com esse ou com aquele presidente de esquerda, mas que a democracia vença. Para mim, isso é fundamental.
Matéria na íntegra: https://www.acritica.com/geral/a-extrema-direita-e-muito-perigosa-para-a-democracia-ela-aposta-no-caos-no-golpe-nas-fake-news-1.377728
07/07/2025