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ABL na mídia - O Globo - ‘Entrar em cena é sempre um risco’, disse Fernanda Montenegro, em 2022

 

Esta entrevista foi publicada no GLOBO originalmente em 2022 e reeditada para a edição especial de 100 anos do jornal. Fernanda Montenegro falou sobre envelhecimento, amigos, livros e a expectativa com posse na Academia Brasileira de Letras. Releia as respostas da atriz para a repórter Fernanda Godoy abaixo.

Foram quatro horas de fascinante imersão no mundo de Fernanda Montenegro. Meus olhos escanearam estantes e paredes do apartamento da atriz em Ipanema. Com os azuis intensos do mar e do céu de verão entrando pelas janelas, o painel colorido de obras de arte de Burle Marx, Heitor dos Prazeres e Manuel Eudócio, entre tantos outros, evidencia que se trata da casa de alguém que ama a cultura. O ambiente é de paz. Surge a voz perfeita da anfitriã, que agradece o elogio e assinala: “É a casa de uma pessoa que vive há quase um século”. De fato. Os móveis da sala dão testemunho parcial de uma carreira de quase oito décadas.

Às vésperas de se tornar imortal pela Academia Brasileira de Letras, onde ocupará a cadeira 17, que pertencia a Afonso Arinos de Mello Franco, Fernanda aspira à imortalidade física. Crê que o Brasil voltou à estaca zero, que estamos “sem plumagem, com a pele entregue à intempérie”, mas não se cala. “Chegou a hora das perguntas desassossegantes’’, diz, sugerindo rumo para a entrevista.

Enquanto se arrumava para as fotos, você disse: “Agora não é uma personagem, sou eu”. Na ABL, a Fernanda de fardão quem será?

Tem que aprender. Ali tem um ritual bem vivido, a Academia caminha pra 130 anos. Há uma estrutura ritualizada. Sempre foi um espaço cultural consagrado e resistiu ao tempo. Há muitos anos frequento a Academia porque amigos tomam posse, então eu me propus. Achei bonito o reconhecimento dessa arte de palco.

Você aceitou montagens ousadas como “The Flash and Crash Days” (1991), de Gerald Thomas. Por que topou riscos depois de estar consagrada?

Qualquer hora que você entra em cena, para dar conta do que for, é vida ou morte. Entrar em cena é sempre um risco. Ou você é aceito ou é rejeitado ali. Não há meio-termo. Há atores extraordinários, que não desistem, porque é uma vocação inarredável. Se pararem, será o fim de uma vida. Todo ser humano deveria ter como ofício pôr em prática a sua vocação.

Qual é o lado bom da velhice?

A memória. Se a velhice permitir a memória, essa é a sua vida. Fui beneficiada pela minha constituição.

Quem são seus grandes amigos que ainda estão aqui?

Nathalia Timberg. Laura Cardoso. Lima Duarte. Estou lembrando os de 90 a 95. Se tiver esquecido alguém, peço que me desculpem. Nos 80 já tem bastante gente.

Dos que já se foram, de quem tem mais saudades?

Fora o amor da minha vida, que é Fernando (Torres), de Sérgio (Britto) e Ítalo (Rossi). Vivemos juntos mais de 50 anos. E trabalhando no teatro, na televisão, trocando opiniões sobre tudo: livros, artes, cinema, viagens. No teatro há uma presença inarredável. Tem que haver cumplicidade.

O espaço cênico é o espaço da liberdade?

Vale tudo ali. Por outro lado, você é um instrumento: você executa, você interpreta. É esquizofrênico. E daí? Agora, voltou para casa... É o integramento de um par. É interessante.

Passou pela sua cabeça se casar de novo?

Não, não, não! Estive junto com esse homem 60 anos. Nos aturamos, nos encontramos, nos desencontramos, nos perdoamos, nos buscamos. Houve uma cumplicidade que não sei explicar. Mas não sou um caso único. Há muitos mais pares pela vida afora do que sonha nossa vã filosofia, sabe? Não faço romance, conto a realidade. Qual é o mistério dessa realidade, eu não sei. A gente vive a vida, e não é uma ciência exata.

Quem você tem lido ou relido?

Graciliano Ramos. Machado de Assis. Clarice Lispector. Cecília Meireles. Nélida Piñon.

Quem, com sua arte, ajuda a restaurar o orgulho de ser brasileiro?

No momento? Caetano.

A que horas você costuma ir dormir?

Sempre chego quase às 2h da madrugada, porque é uma vida em cima de um palco. Então, 1h30, 2h, pela vida afora.

Quando abre os olhos de manhã, qual é a primeira coisa que pensa?

Acordei, vou para a vida. Tenho receio que um dia eu acorde... se eu não acordar, ótimo, porque não passarei pelo processo, mas que eu acorde e.... não vá para a vida. Porque a velhice tem um desplugamento.

Como você sente isso, que é algo que não chegou?

Não chegou, mas já fui melhor. Corria pela vida afora (risos). Agora vou devagar e sempre. Sou de família longeva, mas comecei a ficar espantada de estar caminhando para os cem anos. E o mundo zerado de novo, o Brasil zerado de novo. Mas acredito que haverá uma geração que vai tocar o Brasil para o tempo contemporâneo. Estamos no século XIX.

Nosso tempo está quase acabando...

Quero dizer o seguinte: estamos em tempo de mudança da plumagem. Estamos sem as penas, com a pele entregue à intempérie. Talvez se precise de mais duas gerações para sentir que caminhamos, a tal ponto chegamos a zero com esse homem (Bolsonaro).

Como é a angústia de saber que você não verá isso?

Não verei.

Mas mantém a fé de que seus netos verão?

É. Começarão a ver. Meus netos começarão a ver.

Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/google/amp/100-anos/noticia/2025/07/29/entrar-em-cena-e-sempre-um-risco-disse-fernanda-montenegro-em-2022.ghtml

30/07/2025