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ABL na mídia - Veja Rio - A pedidos, discurso de posse de José Roberto de Castro Neves na ABL

 

Amigos,Confrades, Companheiros, Emprestem-me seus ouvidos!

Aqui estou para abrir meu coração. Este será o discurso mais importante que farei na vida. Não receberei honra maior do que ingressar nesta Academia. Diante desta oportunidade única, confesso – prometi que abriria meu coração – senti falta dos meus pais.

Não apenas porque estariam felizes em participar desta cerimônia, mas também pela inteligência e sensibilidade deles: auxílio fundamental para costurar estas palavras.

Meu exercício foi pensar na reação dos meus pais a esta manifestação e a tudo que ela significa.

Dividi minha fala em três tópicos: os agradecimentos; as reverências aos meus antecessores na cadeira nº 26 (e à ABL) e, por fim, uma espécie de homilia (despida, claro, do divino – uma homilia terrena).

Três conceitos jurídicos: obrigação, tradição e responsabilidade.

Se, nesta noite feliz, eu tivesse apenas uma única palavra – a palavra seria “obrigado”.

Obrigado – uma palavra magnífica.

Segundo o velho “Saraiva”, a etimologia vem de Obligatus: “atado ao redor, ligado, preso”.  Quando alguém diz: “obrigado”, significa que se sente “agrilhoado”.

O mais importante dos Livros do Código Civil é o das Obrigações, nas quais se estudam as relações de crédito e débito.

Meu coração encontra-se assim: atado. Em débito.

O motivo: gratidão.

Gratidão, em primeiro lugar, aos ilustres acadêmicos por admitirem meu ingresso nesta Casa histórica.

Embora, a partir deste momento, sejam meus confrades, intimamente ainda me sinto como aquele “aprendiz de feiticeiro”, referido nos versos de Goethe. Fico alerta, preocupado em invocar, sem querer, um espírito que não domine. Melhor manter-me atento aos mestres.

Esta Academia encontra-se repleta de exemplos, na acepção mais poderosa do termo.

Na minha candidatura, desfrutei de uma “vantagem competitiva”, pois conhecia, fascinado, os feitos dos integrantes desta casa. Pessoas extraordinárias, com justificada proeminência.

Representam a cultura brasileira.

Posso garantir que, para além de intelectuais refinados, são seres humanos afáveis, de doce convívio.

Uma sincera admiração pelos acadêmicos que hoje, nesta noite, se veste de gratidão.

Obrigado também aos meus pais.

Minha mãe, Doris, filha de imigrantes, foi normalista. Formou-se no Instituto de Educação. Embora tenha exercido a magistratura por décadas, com dedicação extrema, nunca perdeu sua natureza de professora.

Meu pai, Roberto – hoje um “espião de Deus” –, ingressou, ainda menino, no internato do Colégio Pedro II. Depois, cursou direito na UEG, hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Lá conheceu minha mãe.

Tempos difíceis para os estudantes. Meus pais se engajaram no movimento estudantil. Perderam amigos queridos. Meu nome homenageia um deles.

Quando meu pai faleceu, há pouco mais de quatro anos, fiquei extremamente tocado. Refleti não apenas sobre ele, mas sobre a sua geração. Os jovens adultos dos anos 60.

Uma geração magnífica. Primeiro porque valorizou a cultura. Uma geração que leu, cantou junta, armou-se de massa crítica. Não teve medo de criar, de abrir portas para o novo. Rebelde, sem perder a ternura.

O segundo motivo para reverenciar essa geração se dá porque, como referi, viveram num país com as liberdades tolhidas – e não se acovardaram.

Por fim, a geração dos meus pais merece reconhecimento pela forma como deu importância ao amor. O amor, nas relações pessoais, ganhou nova dimensão. Foram revolucionários.

A geração do afeto. A geração que me criou. Obrigado.

Meu agradecimento também se destina aos meus irmãos, Luiz Eduardo e Maria Cecília, meus primeiros e melhores amigos.

Aos meus filhos, Guilherme, João Pedro e Maria Eduarda.

Guilherme me ensinou a ser pai. Um “piadista”, como brincamos em casa, dono do maior coração do mundo. Meu companheirão.

João, canceriano, uma explosão de emoções. O afeto encarnado. Agitado, se todos fossem iguais a ele, “tédio” seria apenas um conceito teórico.

Duda, nossa psicóloga de plantão, a menina dos mil nomes que se desdobra para dar atenção a todos. Por isso, ela também se chama “Tutty”, pois é isso mesmo: tudo.

Amorosos, deram “a” proporção da minha vida. Todos os dias, procuro servir de exemplo para eles, como meus pais foram para mim.

Obrigado à Bel, minha cúmplice, cujo encontro, tenho certeza, foi a maior sorte que dei na vida.

Para mim, a Bel é a antecipação do paraíso divino ainda nesta Terra. Por interesse egoísta, busco sempre comportar-me bem, a fim de que, garantido meu lugar no céu, siga ao lado dela pela eternidade.

Agradeço à PUC e à FGV, onde leciono. Conviver com os alunos me garante constante frescor. A atividade de professor universitário, de que me ocupo há três décadas, reflete meu respeito pela docência, infelizmente pouco reconhecida no nosso país.

Ao longo da vida, por onde tive a felicidade de estudar – os colégios Bennett (que já não existe) e São Vicente de Paulo, além das Universidades do Estado do Rio de Janeiro (graduação e o doutorado) e a de Cambridge, na Inglaterra, na qual concluí o mestrado – fui cercado de professores modelares, estímulos para pesquisar e conhecer. Obrigado aos mestres. Obrigado às instituições de ensino que me acolheram.

Por fim, agradeço aos amigos – tenho muitos, ainda bem! –, acumulados ao longo da vida. Grande parte do que sou se dá por conta dessas relações saudáveis, regadas a carinho e respeito.

Registro aqueles com os quais enfrento a faina diária de advogado. Por uma generosidade do destino, divido o trabalho num escritório cheio de amigos – few, we happy few, we band of brothers.

Obrigado a quem veio aqui esta noite. Significa muito para mim!

Na esteira das obrigações, preciso retornar ao conceito jurídico de dívida.

Isso para confessar: devo tudo aos livros.

Nasci numa família que cultivava a leitura e gostava de discutir o que lia. Desde criança, jamais consegui respirar sem livros por perto.

Com eles, encarei desafios, mitiguei dores, compartilhei alegrias.

Cedo percebi: a literatura é a verdadeira alquimia. Transforma tinta no papel em ideias, sentimentos, alimento para a alma e motor para novas descobertas. Para mim, os livros funcionaram como uma droga lícita. Um “dopping” do bem. A literatura coloriu meu caminho. Desde garoto, meus ídolos vinham das letras: Capitão Rodrigo, Aragorn, Huckleberry Finn, Pedro Bala, Mr. Darcy, Atticus Finch, Ahab.

Se o acadêmico Paulo Niemeyer abrir docemente minha cabeça, encontrará, nos lobos cerebrais, um mar de letras, novelos enredando do Padre Bernardes ao Kama Sutra, de Camões a Asterix.

Como definiu o imortal Geraldo Carneiro: “Ler é a arte de viver por empréstimo”. Fui menino de rua com Os capitães da Areia, de Jorge Amado, e tornei-me um religioso ortodoxo com IsaacBashevis Singer. Pelas letras, já morei na Rússia, em São Tomé e Príncipe e na Terra Média. Visitei Macondo e Lilipute. Fui embora para Pasárgada e voltei para Ítaca. Cruzei o sertão (do tamanho do mundo) e os mares atrás de um enorme cachalote branco.

Ao longo da vida, tudo o que fiz se deu, acima de tudo, pelos livros. Até mesmo nas relações afetivas.

Vou contar uma história íntima, que dá boa mostra da minha dívida impagável com os livros.

Quando conheci minha mulher, logo percebi que ela era – permitam-me a expressão popular – “muita areia para o meu caminhão”. Havia ali um clichê: a princesa e o plebeu, a bela e a fera, a deusa e o mortal.

A Bel me parecia inatingível.

Dona de uma beleza iluminada e um sorriso mesmerizante, Bel nem me notava. Surgiu, então, uma ideia ousada: misto de Cyrano de Bergerac com Castro Alves se declarando para Eugênia Câmara.

Encaminhei para a Bel uma carta. Ou melhor: escrevi uma carta dirigida à “Neta da Isabel”.

Evidentemente, naquela época, a Bel, com vinte anos de idade, não tinha neta. Na missiva, eu contava para a neta (que ainda não existia) como havia caído pela avó – ou seja, pela Bel.

Começava assim: “Quando conheci sua avó, eu me apaixonei perdidamente por ela”. Daí por diante, eu declarava tudo.

Quer dizer, declarava tudo menos meu nome, que não tive coragem de assinar… A correspondência seguiu sem identificar o remetente.

A estratégia funcionou.

Ao receber a peculiar mensagem, Bel tentou descobrir quem poderia ter escrito para a neta imaginária. Segundo ela, a suspeita caiu prontamente sobre o “nerd” de óculos, que disparava, vez ou outra, citações de fontes aleatórias. Diz ela que não conhecia outra pessoa que pudesse escrever daquela forma. O resto é uma história linda. Uma história que jamais existiria se eu não gostasse de escrever, se não gostasse de literatura – e se minha mulher não fosse uma pessoa sensível.

Na escola, na faculdade, na vida profissional, nas relações pessoais: os livros me levaram adiante. Minha “munição”, para me valer da expressão de Montaigne.

Estar aqui, assumindo uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, se deve ao que recebi dos livros.

Eis a dívida que me deixa condenado a uma insolvência perpétua.

A história da Academia Brasileira de Letras se confunde com a do Brasil, notadamente com o que sucedeu neste país a partir da Proclamação da República.

O Brasil, extinto o Reinado, procurava modernizar-se. Aspirava a se tornar cosmopolita, importando ideias europeias.

Ordem e Progresso, obra seminal do pernambucano Gilberto Freyre, examina essa efervescente transição da monarquia para a república.

“Ordem e progresso”, grafado no pavilhão nacional, é uma abreviação do lema do positivista francês Auguste Comte:

“O amor como princípio e a ordem como base; o progresso como meta.”

Em 1889, poucos anos antes da fundação da ABL, os responsáveis por confeccionar a bandeira optaram por retalhar o lema, ficando apenas com “ordem e progresso”. Retiraram o “amor”…

O “problema” (com todas as aspas) desse mote consiste no aparente conflito entre “ordem” e “progresso”.

Afinal, ordem pressupõe estabilidade, manutenção do status quo, ao passo que progresso reclama inovação – uma quebra na ordem. Visto por esse ângulo, o lema estampado no “símbolo augusto da paz” oferece um paradoxo.

Só se conjugam ordem e progresso com auxílio de inteligência.

Entre o final do império e o começo da república, sonhava-se com esse equilíbrio da ordem com o progresso.

Ao mesmo tempo, o Brasil buscava estabelecer sua identidade. O país em formação desafiava como a Esfinge de Tebas: “Decifra-me ou devoro-te”.

Alguns intelectuais tiveram a coragem de enfrentar a Esfinge tupiniquim.

Aluízio Azevedo lançou O mulato em 1881. Alfredo Bosi identifica aí o nosso primeiro romance naturalista. Uma denúncia antirracista: Raimundo, jovem maranhense, por conta de sua cor, não pôde se casar com Ana Rosa. Segundo Luciana Stegagno Picchio, esse livro, na época, “escandalizou bem mais do que a obra-prima machadiana, Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicada no mesmo ano”.

Silvio Romero, em 1885, compilou contos populares do Brasil, dando permanência ao nosso folclore.

José Veríssimo trouxe, em 1886, Cenas da vida amazônica. Nele, descortinava a misteriosa floresta para a nação. Mais adiante, no primeiro ano do século XX, Veríssimo apresentou os Estudos de Literatura Brasileira.

Graça Aranha, em Canaã, de 1902, relatou a imigração alemã no Espírito Santo.

Euclides da Cunha publicou Os sertões, em 1903. Contando o conflito de Canudos, desvendou aquele mundo isolado do interior do Brasil.

Todos esses foram primeiros integrantes da Academia Brasileira de Letras.

Eram intelectuais pensando no país.

Embora houvesse uma inspiração na Academia Francesa, guardamos algumas peculiaridades. Uma delas: os primeiros “imortais” nomearam patronos para suas cadeiras, homenageando escritores brasileiros já falecidos. Com isso, a Academia, embora nova, abraçava expoentes do passado, notadamente a geração romântica que antecedeu a dos fundadores.

Machado de Assis, por exemplo, escolheu José de Alencar. Olavo Bilac optou por Gonçalves Dias.

Os primeiros acadêmicos adotaram um motto clássico, a revelar a veia parnasiana de alguns de seus integrantes:

“Ad immortalitatem”, isto é: rumo à imortalidade.

Uma beleza de lema, pois não tem a pretensão de que a imortalidade seja algo simplesmente concedido, porém uma conquista por se concretizar. Um “rumo”.

O grupo instituidor mesclava jovens com homens experientes. Alguns já consagrados como Machado de Assis – o primeiro a presidir a instituição –, Olavo Bilac, Rui Barbosa, José Veríssimo e Joaquim Nabuco. Outros menos conhecidos. Havia monarquistas e republicanos. Abastados e remediados. Conservadores e progressistas. Positivistas. Parnasianos. Boêmios e camisolões.

Não era um grupo homogêneo. Em comum, o amor às letras e a compreensão da importância para o país de fomentar sua cultura.

(Um grupo que, desde o início, percebeu que a arte não evolui, ela simplesmente se modifica).

Desde então, pela ABL, passaram figuras proeminentes da nossa história – monstros sagrados das letras como Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Guimarães Rosa, além de líderes políticos, como Getúlio Vargas, José Sarney e Fernando Henrique Cardoso, estes dois últimos, para gáudio da ABL, atuais ocupantes de cadeiras.

Desde sua gênese, a ABL contou com representantes do universo jurídico: Rui Barbosa, Clóvis Beviláqua, Joaquim Nabuco.

Adiante, a Academia recebeu, para citar alguns jurisconsultos expoentes, Pontes de Miranda (Josué Montello dizia que Pontes de Miranda era tão assombroso que parecia uma invenção do próprio Pontes de Miranda), Miguel Reale, Raymundo Faoro.

Desde a fundação, a ABL mantém-se fiel ao seu propósito original.

(Atente-se ao simbolismo: os acadêmicos usam um fardão que não tem lugar para guardar carteira nem telefone celular…)

Hoje, ordem e progresso são harmoniosamente conjugados, sob a dinâmica presidência de Merval Pereira, a personificação da lucidez, e o firme compasso do secretário-geral, o erudito poeta Antônio Carlos Secchin, poço de sensibilidade.

11 de julho. Nesta data se comemora São Bento. Uma coincidência feliz.

São Bento nasceu na península itálica, no final do século V, num tempo dominado pelo caos. O Império Romano ruíra. Os bárbaros exerciam um poder flácido. O velho estava morto e o novo ainda não havia nascido.

De início, o jovem Bento se dedicou ao estudo da retórica. Curioso, só isso não o satisfez.

Por que nos limitar a só uma arte?

Tocado pela fé, Bento se entregou à vida religiosa. Sua conduta tornou-se exemplo. Bento fundou mosteiros. Criou regras para reger a vida das comunidades religiosas.

Ora et labora – reze e trabalhe. Eis seu lema. Uma vida de dedicação e estudo.

Ele propunha ao religioso uma tarefa: todos os dias, devia-se decorar um trecho das Escrituras. Repetir e refletir sobre a passagem a ponto de incorporá-la. Assim, homem e texto se fundiam, transformando-se numa coisa única.

Um fenômeno lindo e místico: união da carne com a palavra.

O simbólico desta cerimônia, um toque sobrenatural de ingressar na Academia Brasileira de Letras, se relacione ao sacramento desta união: carne e palavra.

Nesta noite, tomo posse na cadeira nº 26 da Academia Brasileira de Letras. Um sonho.

Diz o Talmude: “um sonho não compreendido é como uma carta não aberta”. Preciso, portanto, refletir sobre esse sonho tornado realidade.

A capacidade de ficar perplexo é o começo da sabedoria.

Aqui evoco outra linda palavra da nossa língua, também dotada de acepção jurídica: tradição.

No “juridiquês”, tradição é a entrega da coisa, com o fim de operar a transferência da propriedade. Tradição consiste na entrega – entrega da cultura, dos hábitos, da história, passada de geração a geração. A tradição nos protege, pois garante a força de uma sociedade, unida ao redor de sua cultura.

Embora estas palavras não se sujeitem à burocracia, busco, por formação, seguir as regras. O artigo 22 do Regimento da ABL determina que, nesta ocasião, se faça referência aos antecessores na cadeira.

Cumpro a regra com prazer.

A cadeira nº 26 tem por patrono o poeta romântico Laurindo Rabelo. Segundo Manuel Bandeira, um “carioca, mestiço”, de “origem e condição humilde”, cujo talento como “satírico e repentista granjeou-lhe grande popularidade”.

Morre cedo, pouco antes da fundação da ABL.

Quem primeiro ocupou a cadeira foi o alagoano Sebastião Guimarães Passos, também poeta e, tal como o patrono, boêmio – ele se considerava o último boêmio.

Era jovem – e jovem morreu, em Paris, de tuberculose.

Paulo Barreto o sucedeu. Todos o conhecem pelo seu pseudônimo mais divulgado: João do Rio.

Ele foi um assombro. Segundo o acadêmico Ruy Castro, João do Rio revolucionou a crônica carioca, retratando a então capital do país, no começo do século XX.

A alma encantadora das ruas fala da gente simples: mendigos, tatuadores, presos, trabalhadores da estiva.

Vestia-se como um dândi. Irreverente e divertido. Um homem à frente do seu tempo.

João do Rio acumulava livros obsessivamente. Havia livros até na cozinha de sua casa, obrigando-o a fazer todas as refeições nos restaurantes.

Em 1910, quando eleito para a ABL, com 29 anos, era o mais moço dos acadêmicos.

Ao recebê-lo, Coelho Neto anotou:

“A Academia acaba de abrir as portas aos novos; é bom que assim seja”.

Foi o primeiro a tomar posse usando o fardão, hoje símbolo dos “imortais”. Uma inovação que pegou. Com ele, o progresso falou mais alto do que a ordem.

João do Rio também morreu cedo, aos 39 anos, vítima de um enfarto fulminante, num taxi que o levava para casa, em Ipanema – para alguns, João do Rio “inventou” Ipanema. Em suas crônicas, exaltava o bairro recém-criado, então distante do centro da cidade. 

Seu enterro parou a capital. Estima-se que mais de cem mil pessoas foram se despedir do cronista. Uma comoção. 

Em seguida, Constâncio Alves assumiu a cadeira. Formado em medicina na Bahia, migrou para o Rio, para se dedicar ao jornalismo. 

Próximo do grupo dos fundadores da ABL, Constâncio Alves não ingressou antes na Academia por lhe faltar um livro – exigência do Estatuto. Gozava de prestígio entre seus pares, tanto que proferiu, em nome da instituição, o discurso por ocasião do falecimento de Rui Barbosa. 

Depois, veio o poeta, diplomata e escritor Rui Ribeiro Couto. Santista e bacharel em direito, Ribeiro Couto granjeou notoriedade pelo romance Cabocla, que caiu no gosto popular. 

Um saboroso chavão: Jerônimo, rapaz da cidade grande, amigo da farra, para cuidar da saúde, muda-se para o interior – chega a uma cidade fictícia, cujo nome expressa o conceito: Vila da Mata. Lá, conhece Zuca – a “cabocla” –, jovem mulher, livre, sem as malícias da metrópole. Os dois, claro, se apaixonam. O amor redime.

Quem resiste a uma história como essa? 

Ribeiro Couto ingressou na ABL com 36 anos. Era o acadêmico mais jovem – a revelar a tradição desta cadeira em acolher os “benjamins”. 

Mais um com inclinação boêmia. O integralista Ribeiro Couto foi o segundo ocupante da cadeira a falecer na capital francesa. 

Em seguida, mais um filho do Itamaraty: Gilberto Amado. Sergipano criado em Recife, forjado pelas ciências jurídicas, passou pela política e seguiu carreira diplomática, servindo em importantes postos. Foi também professor universitário e delegado do Brasil na Assembleia da ONU. 

Em 1914, o jovem Amado candidatou-se à Academia. Havia publicado As chaves de Salomão, com aclamados ensaios sobre o nosso país. Embora considerado favorito (segundo seu próprio relato), perdeu por um voto. 

Brilhante e temperamental, Gilberto teve a vida marcada por um crime. No ano seguinte à tentativa frustrada de ingresso na ABL, ele assassinou o poeta e galã Anibal Teófilo. 

Depois de sofrer sistemática ofensa de Teófilo – o que hoje chamaríamos de “bullying” –, o sergipano passou a andar armado. 

Ao se avistarem num evento, Gilberto Amado, acreditando que o bonitão partia para cima dele, sacou o revólver e acertou um tiro fatal no desafeto. 

No enterro, inúmeras fãs e amigos do poeta gaúcho, entre eles Olavo Bilac, banharam o cadáver de perfume francês. 

Gilberto Amado foi absolvido, valendo-se da tese de que agira com os sentidos perturbados. A opinião pública, contudo, o condenou. 

Quase 50 anos após o crime, Gilberto Amado ingressou na Academia. A ABL, portanto, o perdoou. 

Errar é humano e perdoar é divino. 

Nas memórias de Gilberto Amado, encontrei uma passagem com a qual me identifiquei: 

“Ler na cama desafia qualquer outra felicidade suscetível de ser usufruída por um homem inteligente”. 

Mauro Mota, sexto ocupante, foi o primeiro da cadeira nº 26 a nascer no século XX. 

Pernambucano, Mota foi poeta, jornalista, advogado e professor. Em um de seus trabalhos, compila formas como os animais são empregados “na fala da nossa gente”. Vai de “Abelhudo” a “Zebu”. 

“Não há doce ruim nem cabra bom”, ensina. Aprendi com ele outra deliciosa expressão: “olhos de carneiro morto”, para designar quem acaba de despertar. Ou, ainda, revelando sabedoria: “Não vendas a pele do urso antes de o matar”. 

Mota foi grande amigo de Marcos Vinicius Vilaça, seu conterrâneo. Ainda em vida, Mota iniciou a campanha para integrar Vilaça à ABL. 

Quis o destino que Marcos Vilaça, mais um acadêmico com formação jurídica, ocupasse a vaga deixada pelo falecimento do próprio Mota. 

Vilaça, um dínamo, destacou-se, desde jovem, em relevantes cargos públicos. Presidiu a Legião Brasileira de Assistência. Nos anos 80, ingressou no Tribunal de Contas da União, presidindo o órgão. Dedicou mais de 50 anos de sua vida à causa pública. Por onde passou, deixou sua marca de competência. 

Seu Coronel, coronéis, em coautoria de Riberto Cavalcânti, tornou-se um clássico da sociologia nacional. 

Também nos anos 80, Vilaça foi eleito para a ABL, liderando esta casa por dois mandatos. 

Dotado de visão holística, no seu discurso de posse, Vilaça compartilhou sua concepção de ABL: uma “instituição voltada às humanidades”. Ponderou que a Academia “deve estar atenta à tradição que modernize o presente, sem que o novo despreze o antigo. Tradição e modernidade podem e devem viver em perfeita harmonia”, pontificou. 

Eis o casamento da ordem com o progresso – como forma de seguir “rumo à imortalidade”. 

Dizer apenas que Marcos Vilaça era de Pernambuco seria insuficiente. Muito mais do que isso, Vilaça atuava como embaixador de sua terra. Uma veia que segue pulsando nesta casa pela verve de José Paulo Cavalcanti e Joaquim Falcão. Este último, que me honrou com generosa saudação, serve de espelho da independência, própria dos legítimos intelectuais. 

Tive o prazer de conhecer Marcos Vilaça. Dono de uma inteligência invulgar, ele, pelo carisma, dominava qualquer ambiente. 

Uma honra sentar-me nesta cadeira de brasileiros tão especiais. 

Todos imortais. 

Sobre nossa finitude, lembro-me da epopeia de Gilgamesh, mítico rei de Uruk, cidade da Mesopotâmia. 

Uma lenda quase dois mil anos mais velha do que os versos de Homero. 

Não é este o momento de narrar as aventuras de Gilgamesh – embora valha a pena conhecê-las. Vou me ater a uma das conclusões da lenda. 

Ocorreu que Gilgamesh, a certa altura, passou a buscar a imortalidade. A perpetuidade tornou-se uma obsessão para ele. 

Depois de idas e vindas, o herói, acumulando sabedoria, percebeu que seu corpo estava fadado a morrer. Era inevitável. No entanto, seu nome poderia permanecer vivo, a depender da qualidade de suas façanhas. 

Dedicou-se, então, a construir altos e potentes muros para sua cidade. Uma obra que resistiria à sua morte física. Por meio do feito, garantiu a eternidade. 

Uma boa história desafia o tempo. 

A mitologia grega fala das górgonas: três irmãs de aspecto horrendo, com cabelos formados por serpentes. Delas, duas eram imortais e uma vulnerável, sujeita à morte. 

As pessoas conhecem apenas a irmã que morreu: Medusa. 

Isso porque se tornou famosa a história de como o herói Perseu enfrenta e mata a aberração. As irmãs imortais, Esteno e Euriale, ficaram esquecidas. O que garantiu a permanência de Medusa no imaginário popular foi sua história. 

A imortalidade, portanto, depende do que fazemos em vida. Do que falamos, escrevemos, construímos, das relações que estabelecemos, da contribuição que dermos à sociedade. Eis o “rumo à imortalidade”. 

Isso leva ao terceiro e último tema da minha fala. 

Valho-me, mais uma vez, de um conceito jurídico: responsabilidade. 

O mais famoso príncipe dinamarquês via seu mundo fora da ordem. 

“The time is out of joint: O cursed spite,

That ever I was born to set it right!’ 

Algo como: “o mundo está fora da ordem. E cabe a mim – que desgraça (!) – colocá-lo nos eixos!” 

Hamlet se sentia responsável por consertar o que havia de errado. 

O herói trágico de Shakespeare e São Bento percebiam o mesmo: tanto que havia algo estropiado em seu mundo, como o dever de emendá-lo. 

Ambos – para o que importa neste momento – compreenderam a existência de um dever. 

Temos que recuperar esse sentimento de responsabilidade. 

Vivemos num país em construção. Há muito o que fazer. 

Ainda mais, neste momento. 

Todo tempo traz suas tormentas. O nosso está cheio delas. 

O mundo está fora da ordem. 

Os sintomas da disfunção brotam de todos os lados. 

Um mundo que tenta nos ensinar a pensar por meio de algoritmos. Um ou zero. A sociedade, tal como um rebanho, se divide – e encontra dificuldade de enxergar outras vias. 

A juventude é doutrinada a se hipersensibilizar. Tudo ofende, a dificultar o debate. Utiliza-se ignorância como escudo. 

As palavras, pasteurizadas, ficam reféns do politicamente correto. Tudo a tolher a troca de ideias profundas. 

As imagens são deturpadas. Já não podemos acreditar no que vemos. 

Um mundo regido por uma lógica utilitarista, apegada aos ganhos econômicos, que desconsidera outras formas de bem-estar, como a solidariedade, a filantropia, a educação humanística. 

Oscar Wilde profetizou: “As pessoas conhecem o preço de tudo, mas não sabem o valor de nada.” 

Um mundo que dá mais importância à economia do que à educação. 

Um mundo cujo conceito de sucesso se mede por números. 

No futuro, qualificaremos este momento histórico como disruptivo. 

A revolução tecnológica estabeleceu novos paradigmas. 

Ainda não conseguimos saber se as novas ferramentas nos libertam ou aprisionam. 

Para falar do mundo hoje, fundamental distinguir dois conceitos: informação e cultura. 

Nunca tivemos tanta informação. Isso, conceitualmente, é positivo. Entretanto, a informação, hoje, nos atropela; ela chega antes de ser procurada, pelas mídias mais diversas. A informação nos assalta sem filtro, de forma desorganizada e incessante.

Recebemos mais informação do que conseguimos digerir. Somos presas fáceis das “fake news”. 

Com velocidade assustadora, sabe-se tudo em tempo real – notícias relevantes se misturam com trivialidades: nasceu um urso panda no zoológico de Pequim, uma criança inocente morreu atingida por bala perdida, um jogador de futebol machucou a panturrilha direita… 

A maioria das informações não possui importância. São descartáveis. 

Cultura é diferente. Cultura também chega por meio de informação. Porém, são informações com carga valorativa. Nelas há ensinamentos. Carregam conceitos éticos, estéticos, históricos. 

A cultura permite a formação da memória coletiva, estabelece valores comuns, molda padrões de conduta. 

Independentemente da religião que se siga (ou mesmo para um ateu), identifica-se uma pletora de conceitos éticos na Bíblia, tais como amor ao próximo, generosidade, compaixão. 

Quando Marlowe, Goethe, Thomas Mann e Guimarães Rosa nos relatam homens celebrando pactos com o diabo (uma eloquente metáfora aos limites éticos), somos forçados a refletir sobre quais valores pretendemos guardar. 

Homero, Dante, Shakespeare e Érico Veríssimo são fontes de cultura. Também são fontes os orixás da tradição iorubá, o funk da periferia e os bois de Parintins. Mozart, Beatles, Cartola e Lupicínio Rodrigues. Roberto Carlos, Steven Spielberg, Giotto, Oscar Niemeyer e Cândido Portinari. Ésquilo, Rita Lee, Amos Oz, Clarice Lispector e Maria Callas. Caravaggio, Elvis, Eça de Queiroz e Tom Jobim. Essa é a matéria da qual somos feitos.

Segundo Andre Maurois: 

“A nossa civilização é uma soma de conhecimentos e memórias acumuladas pelas gerações que nos precederam. Não podemos participar dela senão entrando em contato com o pensamento dessas gerações.” 

Se desejamos conhecer um povo ou uma civilização, devemos identificar sua arte, folclore, culinária. Se pretendemos conhecer a nós mesmos, não há outro caminho senão pela compreensão da cultura que nos cerca. 

Um país sem cultura é um país sem gosto, sem alma. Sem cultura, o país se resume a uma delimitação geográfica habitado por estranhos entre si. 

Os norte-americanos se esforçam em construir seus mitos, exatamente para fortalecer sua unidade. 

Os alemães têm profundo orgulho em dizer que se formaram como nação ao redor de uma língua. 

Recorro a uma história familiar. Certa vez, minha mãe visitou minha avó no hospital.  Levou, para alegrá-la, um livro de poesia. Minha avó, alemã, embora vivesse no Brasil há décadas, explicou carinhosamente: “Filha, poesia só em alemão”. 

A emoção se relaciona à língua, à cultura. 

Em termos culturais, somos abençoados. O Brasil se formou a partir de distintas fontes. 

Essa riqueza proveniente da diversidade serve como trunfo. Porém, para que dela tiremos proveito, devemos cultivá-la. 

Do contrário, seremos como quem vive de forma miserável, sem saber que, enterrado sob nossos pés, se esconde um valioso tesouro. 

Cultura, como explica o acadêmico e poeta Gilberto Gil, é “necessidade básica” – deveria estar no nosso prato de todos os dias, como feijão e arroz. 

Sem cultura, perdemos a identidade, ficamos sem referências. Spinoza ensinou: “As coisas que nada têm em comum não podem ser compreendidas umas pelas outras”. Para que possamos compreender e ser compreendidos, devemos compartilhar valores. 

Sem cultura, não distinguimos o certo do errado, a beleza da feiura, a gentileza da grosseria. 

Quem leu Huckleberry Finn, de Mark Twain, ou o conto Pai contra mãe, de Machado de Assis, saberá apontar o mal, o errado, o desumano. Desenvolverá empatia, perceberá o atraso contido em qualquer forma de preconceito.

Quem leu Gonçalves Dias respeitará os mais velhos. Quem leu Salinger respeitará os mais novos. Quem leu Kafka e se impressionou com Guernica, de Picasso, temerá o autoritarismo. Quem leu Raymundo Faoro perceberá o mal advindo da corrupção. Quem riu com a Rainha de Copas, de Lewis Caroll, perceberá como os tiranos são ridículos. Quem assistiu às divinas “Fernandas” em Ainda estou aqui compreenderá a força invencível da mulher para proteger sua família. Quem ouviu Gil, Caetano, Gal e Bethânia saberá que atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu. 

A revolução tecnológica a que assistimos – sem compreender perfeitamente seus efeitos, pois estamos no olho do furacão – oferece um excesso de informação; porém, sem o filtro da inteligência crítica, acaba privilegiando mensagens rasas, que não desafiam maiores reflexões. 

Temos que nos educar, a fim de distinguir, de um lado, a mera informação e, de outro, cultura. 

Quem ensina a promover essa distinção é a própria cultura. Um ciclo virtuoso: apenas com elementos fornecidos pela cultura, encontra-se o que verdadeiramente interessa. Sem massa crítica, não se separa o joio do trigo.

Entre as formas de assimilar cultura, sobressaem os livros. 

Assim, hoje, a leitura se torna uma atividade ainda mais essencial: serve de guia. Um mapa. 

Aí está o antídoto contra a “overdose” de informações inúteis. 

Eis o que está fora da ordem, que acaba por contaminar tudo, esgarçando conceitos éticos e fragilizando o senso de comunidade: as pessoas pouco leem. 

O número de leitores no país assusta. A recente pesquisa “Retratos de Leitores no Brasil” identificou que, atualmente, há, no país, mais não-leitores do que leitores. 

Pior, eles diminuem. O Brasil perdeu leitores em comparação a 2019. Segundo se apurou, 73% dos brasileiros não completaram a leitura de nenhum livro no último ano. Sete milhões de pessoas deixaram de ler, informou a pesquisa. 

Estamos fora do eixo. 

Sem leitura, não desfrutamos do tesouro debaixo dos nossos pés. Ficamos sem estofo e capacidade para criticar, de forma construtiva, quem exerce o poder. Perdemos a sensibilidade para nos horrorizar com tanta injustiça social. 

Sem leitura, não temos capacidade de perceber o relevante. 

A solução – a única solução – se dá pelo estímulo à educação. Por meio da educação, oferecida em grande parte pelos livros, o ser humano se desenvolve – e, assim, carrega a humanidade adiante num rumo civilizatório. 

Afinal, os livros nos libertam da arrogância da certeza, garantem dignidade, porque se relacionam à formação do ser. 

Conhecimento é patrimônio que não se perde. 

Fiz questão de mencionar, nesta noite, os colégios por onde passei. Das instituições de ensino por onde meus pais passaram. Isso é a minha história – é a história de cada um de nós. Uma história forjada pela educação. 

Somos a educação que recebemos. Os livros que lemos. As obras de arte que apreciamos. As músicas que ouvimos. Somos aquilo que nos emociona. Somos a cultura que reverenciamos. 

Eis a principal missão, diante da realidade, do cidadão brasileiro: atentar para a educação, fomentar o hábito de ler e, assim, fortalecer nossa cultura. 

O caminho para uma sociedade justa passa pela capacitação. A dignidade que se ganha com o saber, em adquirir ferramentas para questionar e, assim, exercer a democracia plena, com liberdade informada. 

Por isso falo de responsabilidade. 

A responsabilidade que sentiu São Bento de trazer ordem ao seu mundo desfigurado. A responsabilidade de Hamlet ao enfrentar o tio usurpador. A responsabilidade assumida pelos fundadores desta Academia Brasileira de Letras – e dos seus integrantes desde então. A responsabilidade de qualquer brasileiro de construir um ambiente profícuo para que as pessoas neste país possam se desenvolver intelectualmente. 

Essa a missão. Minha e de todos nós. 

Essa responsabilidade por velar pela educação, por garantir acesso à cultura, é meu tema nesta noite. 

Sozinho, minha força é limitada. Juntos, porém, podemos mudar o mundo. 

Matéria na íntegra: https://vejario.abril.com.br/coluna/lu-lacerda/a-pedidos-discurso-de-posse-de-jose-roberto-castro-neves-na-abl/

16/07/2025