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ABL na mídia - Veja SP - Eleito imortal da ABL, Milton Hatoum fala sobre novo livro que encerra trilogia ‘O Lugar Mais Sombrio"

 

Escritor manauara, único amazonense na ABL, conversou sobre seu processo de escrita: "sou obstinadamente lento” 

Único amazonense imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), Milton Hatoum, 73, recebeu com uma satisfação modesta o feito, dedicando a homenagem aos seus leitores. Responsável por clássicos da literatura, como Relato de um Certo Oriente (Companhia das Letras; 152 págs.; R$ 59,90), primeiro romance publicado do autor, e Dois Irmãos (Companhia das Letras; 280 págs.; R$ 89,90), o manauara ocupa a cadeira de número 6, que pertenceu a Cícero Sandroni (1935-2025). A nomeação coincide com o fim da trilogia O Lugar Mais Sombrio, com a publicação de Dança de Enganos (Companhia das Letras; 256 págs.; R$ 79,90).

O escritor ainda comemora a adaptação de seu primeiro romance para as telonas com o longa Retrato de um Certo Oriente (2024), dirigido por Marcelo Gomes. Morador de São Paulo há mais de duas décadas, Hatoum participou de uma sessão especial do filme no Centro da Terra, falando sobre as conexões entre cinema e literatura. “Eu tive muita sorte com os roteiros, gostei muito das adaptações. O Marcelo trouxe questões atuais que não estavam no livro, como os refugiados políticos, mas de uma forma muito sutil e delicada”, conta. Confira a seguir a entrevista completa concedida à Vejinha.

Atualmente, o senhor é o único amazonense imortal. Como enxerga o papel da sua nomeação para a literatura?

Eu acho que é uma homenagem aos meus leitores e leitoras da Amazônia. Mas também aos leitores brasileiros, né? Porque são eles que justificam a literatura. E também não deixa de ser uma forma de reconhecimento do meu trabalho.

Dança de Enganos, o terceiro livro de sua trilogia, chega às livrarias em 20 de outubro, após um hiato de seis anos entre ele e o segundo. Como foi o processo de construção dessa obra?

Essa trilogia é, de certa maneira, a minha vingança contra a ditadura. Toda ela já estava escrita e a cada volume que eu entregava eu reescrevia o seguinte. Mas o terceiro foi o que mais sofreu mudanças, porque eu estava muito sensibilizado com o que tinha acontecido nos anos da pandemia e no governo anterior. Fiz várias mudanças e acréscimos, por isso demorou tanto. Eu quis trazer o passado para o presente, quis que o romance rasgasse a máscara do real.

O Lugar Mais Sombrio é seu projeto mais ambicioso até agora?

Não sei se foi o mais ambicioso, foi um dos que me tomou mais tempo. Mas eu sou, realmente, obstinadamente lento. Eu escrevo a mão e muito devagar, leio muito mais do que escrevo. Dois Irmãos, por exemplo, eu demorei dez anos na escrita. Depois, me apertei um pouco e escrevi Cinzas do Norte (Companhia das Letras; 272 págs.; R$ 269,70) em cinco anos. E a trilogia, olha só, são quase dez anos. É um desafio

criar um universo ficcional com os seus conflitos e personagens. O romance é um relato de uma aventura e um discurso sobre a temporalidade. Nós, escritores, vivemos anos convivendo com esse sonho acordado no coração da linguagem. Mas eu não me apresso, cada um tem seu ritmo, e o meu é amazônico.

Agora, acordado desse sonho, como está sendo compartilhá-lo com os leitores?

O contato é sempre um mistério. O leitor é o ser mais misterioso da literatura. A gente não sabe como ele vai responder ao livro, como será essa reação. De algum modo, eu acho que esse terceiro volume pode ser lido de maneira independente, porque é o livro da mãe do Martim e reúne memórias nas quais ela conta a história dela e de pessoas ao redor. Então, é um livro muito particular e fala sobre o engano, por isso

o nome, que foi ela não perceber o que ocorria no entorno. E, aos poucos, ela vai chegando nessas histórias secretas.

"Nós, escritores, vivemos anos convivendo com esse sonho acordado no coração da linguagem. Mas eu não me apresso, cada um tem seu ritmo, e o meu é amazônico"

No final de Pontos de Fuga, o senhor encerra com uma frase sobre memória inspirada em um poema de Jorge Luis Borges. Quais outros escritores e poetas inspiram e permeiam o tecido da sua escrita?

Eu trago muitas apropriações de poetas. Eu sou um poeta frustrado, sabe? Eu escrevi um livrinho em 1979 com alguns poemas, textos e fotos de amigos da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP). Eu queria ser poeta, mas aí descobri que você não pode querer ser poeta: ou você é ou não é. Eu, enfim, tentei trabalhar com a lírica nos meus romances, sobretudo no Relato de um Certo Oriente. E os meus poetas são todos brasileiros e muitos deles estão citados nos meus primeiros volumes. Tem a epígrafe de Drummond no Dois Irmãos e a de João Cabral de Melo Neto em Noite da Espera (Companhia das Letras; 216 págs.; R$ 79,90). Enfim, os poetas que me sensibilizaram e me tiraram do tédio e da amargura.

Falando em memória, ela tem um papel fundamental na sua literatura, é motor de muitas obras. O que é a memória para o senhor?

Quando eu escrevo, a memória e a imaginação são praticamente inseparáveis. Talvez por isso eu espero o tempo passar para escrever, porque a memória do passado recente não me interessa. Não dá samba, não dá literatura. Então, eu escrevo vinte ou trinta anos depois da minha experiência de vida. E aí a memória tem a força da imaginação, porque não é mais nítida, ela não é mais precisa. E são esses caminhos da incerteza da memória que me inspiram e me fazem imaginar.

O senhor diria que a sua literatura carrega uma nostalgia da Manaus da sua infância?

Olha, não é uma nostalgia: é uma melancolia. Eu acho que todo escritor tem o seu paraíso perdido e o meu é Manaus. Porque a cidade da minha infância e da minha juventude é uma cidade belíssima, que mantinha uma certa harmonia com o Rio Negro e com a floresta. E esse convívio, essa harmonia foi rompida com péssimas políticas urbanas. Manaus nunca teve um projeto de habitação socioambiental que contemplasse toda a população. Hoje, metade da cidade é uma favela que reúne, segundo o IBGE, os piores índices de saneamento básico. Os igarapés foram aterrados, estão poluídos. As cachoeiras do Tarumã correm o risco de desaparecer. Então, é uma melancolia e uma indignação, porque nossas cidades poderiam ser bem mais humanas. E, por isso, eu falo da literatura como vingança contra essa brutalidade, esse processo destruidor.

 

Fonte: https://vejasp.abril.com.br/cultura-lazer/eleito-imortal-da-abl-milton-hatoum-fala-sobre-novo-livro-que-encerra-trilogia-o-lugar-mais-sombrio/

27/09/2025