Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos

Artigos

  • Mocinha

    Em 1990, quando tomei posse de minha cadeira na Academia Brasileira de Letras, agi de modo a ligar o mais possível a cerimônia, o uniforme, o colar e a espada aos rituais de festa do nosso povo. Eu lera, de Gandhi, uma frase que me impressionou profundamente. Dizia ele que um indiano verdadeiro e sincero, mas pertencente a uma das classes mais poderosas de seu país, não deveria nunca vestir uma roupa feita pelos ingleses. Primeiro, porque estaria se acumpliciando com os invasores. Depois, porque, com isso, tiraria das mulheres pobres da Índia um dos poucos mercados de trabalho que ainda lhes restavam.

  • Celso Furtado, o oitentão 'imortal'

    Aí está, nas livrarias, a 10ª edição do livro “Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico”, do acadêmico Celso Furtado, que o considera o mais importante livro de sua vida, como resultado de 20 anos de estudos realizado na França.

  • Não se pode sair nem um bocadinho

    A gente custa a reconhecer certas verdades desagradáveis, mas o tempo acaba por impô-las. Nunca fui candidato a cargo público nenhum e, por conseguinte, jamais pedi votos a ninguém, nem sou responsável pela administração de qualquer serviço do Governo, de qualquer tipo. Mas a realidade conspira em contrário, e a dura verdade é que sinto no ar um dever indefinido de não deixar o país. Quando estou lá fora, sempre aprontam alguma coisa, até mesmo se se trata de país tão amigo e fraterno quanto Portugal. Começam a acontecer coisas lá mesmo, se bem que, no geral, somente na alfândega. A alfândega portuguesa, que me deu uma boa coça no Porto, não faz muito tempo, alimenta graves suspeitas sobre minha pessoa e, no Porto, quase peço permissão ao Sr. Dr. Alto Funcionário da Aduana para dar um pulinho lá fora e tentar conseguir pelo menos uma maconhazinha, a fim de que ele não ficasse tão desalentado com o fato de só haver roupas em minha bagagem. Chateia um pouco, mas não reclamo. É direito deles e a culpa, como já sublinhei aqui, certamente se deve à minha cara de contrabandista congênito.

  • O adeus da ABL a Barbosa Lima

    Integridade e coerência sintetizam o longo e profícuo percurso existencial do acadêmico e jornalista Barbosa Lima Sobrinho. O País inteiro lhe pranteia a ausência, porque sabe que os pais da pátria, como ele, lastreiam a nacionalidade e lhe asseguram a perpetuidade pela palavra e pela ação. Ao longo do tempo histórico, registra-se a presença de uns tantos homens que emergiram do anonimato e deram o seu grande recado, mercê de toda uma vida devotada à causa nacional.

  • Um malandro especial

    Na linguagem popular, registrada pelos nossos melhores dicionários, como o Aurélio, o Antenor Nascentes e o Koogan-Houaiss, malandro é um indivíduo que não trabalha, vive de expedientes, que pode ser também vadio, matreiro, finório. A despeito disso tudo, aprendemos a respeitar a figura de Moreira da Silva, sucesso como cantor e homem de rádio há tantos anos.Sempre que se apresentava, era lembrada sua condição de malandro, o que aliás, contrariava o trabalho que fazia, na defesa da música popular brasileira. Ele foi, indiscutivelmente, um dos grandes nomes da MPB, mas ficou com a fama com que era tratado. A malandrice fazia parte de sua personalidade.

  • Língua sem extremismos

    É preciso cuidado no trato da língua portuguesa. Aprendi isso com um mestre acima de qualquer suspeita: Antônio Houaiss. Quando ele preparava os verbetes do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, dirigindo uma equipe altamente competente, sempre chamou nossa atenção para a diferença entre Vocabulário e Dicionário. Aquele pode conter palavras efêmeras, até de outras línguas, desde que sugestivas de uma época vivida. Podem ser retiradas no futuro. Este, que lida com o significado dos verbetes, tem um número menor de palavras e há um cuidado todo especial na sua adoção, pois em geral não saem mais do dicionário. Podem ficar para sempre, às vezes transformadas em arcaísmos.

  • A criança e o poeta

    Que o poeta e a criança costumam participar do mesmo plano de realidades, é coisa em que sempre acreditei. Uma certa pureza de percepção como que separa nacos do mundo para eliminá-los por dentro, o que dota a visão da criança e do poeta de uma nitidez que afasta das imagens qualquer traço desnecessário. Dir-se-ia acontecer, aí, um reducionismo na linha de Husserl, de reduzirmos o real a seus aspectos fundamentais e colocarmos entre parênteses tudo o que pode esperar. Essa identidade faz pensar também na tese da "poesia do instante" de Gaston Bachelard. O instante é a poesia. Acrescenta Bachelard: "Fora do instante , só existem a prosa e a canção." A sintaxe pode deter ou desviar as consequências do instante poético. É, assim, natural que o poeta e a criança intervenham na sintaxe e inventem uma linguagem.

  • Emocionante torcida por submarinos noturnos

    Os ingleses inventaram o futebol. Os americanos, o basquete. Os espanhóis, as touradas. E os romanos, as lutas livres. Tudo bem, cada coisa em seu lugar. O carioca inventou uma modalidade esportiva bem mais interessante, embora caída em desuso devido à violência urbana e ao medo de assaltos. Um esporte complicado, gostoso, que consistia em torcer por uma corrida imaginária de submarinos, à noite, ali no Arpoador, no Leme, mais tarde em toda a orla.

  • Internet e língua portuguesa

    A Comemoração dos nossos primeiros 500 anos encontra a língua portuguesa diante do que talvez seja o seu maior desafio: a globalização. Explico: cada vez que a Internet se populariza um pouco mais, com os seus milhões de endereços eletrônicos, há uma tendência por ora incontornável de supremacia da língua inglesa. Como se ela representasse, hoje, o esperanto antes sonhado por Zamenhoff.

  • Da disciplinaridade para a transdisciplinaridade: uma proposta pedagógica

    A universidade está em crise de identidade, e sempre estará. Este futuro aparentemente sem saída é precisamente o seu único caminho a trilhar. Isto porque a vida universitária vive e respira a atmosfera do questionamento. E jamais devemos temer a dúvida metódica. Questionar é afastar de vez o fantasma do dogmatismo, das verdades feitas a serem apenas assimiladas pelos espíritos superficiais. A consistência intelectual pressupõe a contínua busca de sentido que sempre foge ao primeiro olhar inquiridor e, muita vez, não se deixa entremostrar à avidez legitima de quantos se entregam à aventura de viver perigosamente.

  • Chegou janeiro

    "Chegou janeiro, quero meu dinheiro". É o refrão de uma velha história infantil, que nós, meninos, gostávamos de fazer repetir para devidamente nos assustarmos. Era a história de um devedor que se alegrava por ver morto, em dezembro, um credor a quem ele prometera pagar em janeiro a sua dívida. Mas alegrou-se à toa: quando chegou o primeiro de janeiro, deitou-se na rede gozando a impunidade, mal foi fechando os olhos sentiu duas mãos que lhe puxavam as orelhas e escutou uma cantiguinha na voz do falecido: Chegou janeiro, quero o meu dinheiro!" Quando era de noite e nós conseguíamos alguém que pela centésima vez nos repetisse o refrão com sua musiquinha era o triunfo: o resto da noite (provavelmente até meia-noite) nós ficávamos acordados curtindo a assombração com sua cantoria: "Chegou janeiro, quero o meu dinheiro." Essa história da assombração eu creio que é um item inevitável entre quaisquer grupos humanos. O fato é que o ser humano sente, obscuramente mas fundamentalmente, a necessidade de ter medo. E é talvez por causa do medo que sobrevivemos, ou, mais que isso, crescemos em milhões e até em bilhão, povoando quase completamente a Terra. Podia-se criar um axioma dizendo: "Os valentões são os primeiros que morrem". E, como são os valentes os que planejam e organizam os ataques e as resistências, acontece que, perdidos eles, as turbas que os seguiam acabam se confundindo, mergulhadas na desordem e na injustiça. Ou numa direção, acompanhando cegamente um novo líder que emergiu, e a sua perigosa mensagem. Quando falo em liderança, note-se que estou me referindo a condutores normais de povos e não a profetas alucinados como Hitler. Que Napoleão, também guerreiro genial, que trazia dentro de si um estadista. E, assim mesmo, acabou-se desterrado e solitário. É um fato social curioso: os grandes guerreiros suscitam grandes entusiasmos, mas não suscitam correspondente fidelidade. Quando eles querem arrastar seus povos para além de uma linha normal de segurança, vão perdendo a unanimidade dos seus entusiastas. Aqui e ali vão pipocando resistentes, que recuam, à medida que o mestre avança. Como dizia o nosso amado e saudoso Austregésilo de Athaíde:"O grande líder tem sempre que ser doido. Mas, como doido que é, tem que sempre acabar mal."

  • Deus e o capitalismo

    Escreve-me um jovem físico de São Paulo. Chama-se Júlio, tem 26 anos e elogia as posições que venho tomando nesta coluna em favor do povo pobre do Brasil. Diz que, a princípio, ficou mesmo admirado por ver a Folha acolhê-las e publicá-las. Mas depois, refletindo melhor, chegou à conclusão de que, tendo eu uma visão religiosa do mundo e do homem, aquelas posições ficam todas invalidadas, porque a idéia de Deus é o principal sustentáculo do castelo de privilégios da elite econômica política, que dela se serve para manter o povo resignado diante de todas as desigualdades e injustiças.

  • Pessoa na passagem

    Continua Fernando Pessoa a impor sua presença na poesia de língua portuguesa desta virada de século. O império português, com tudo o que de bom e mau teve, deixaria de existir em plena década de 70 no Século XX, quando Fernando Pessoa estava morto, havia quarenta anos. Aquele povo de fala nova, que em 1500 não ultrapassava de muito o milhão de pessoas, chega ao limiar do milênio com um saldo de poesia que, devido principalmente a Fernando Pessoa, o coloca numa vanguarda que não é menor por não ser reconhecida pelos cultores de línguas faladas nos impérios do momento.

  • Palavras sem fronteiras

    Sérgio Correa da Costa, da Academia Brasileira de Letras, é não apenas um grande diplomata brasileiro, mas ensaísta e historiador de grandes méritos. O seu livro "Palavras sem fronteiras", primeiro lançado com muito sucesso na França, chegou ao mercado brasileiro, destinando-se a uma bonita carreira. Resultado de uma pesquisa pioneira de dois anos, pode ser apreciado pelo que tem de utilidade e também de surpresas que fazem parte do seu conteúdo. Uma delas é o predomínio do francês sobre o inglês, nas palavras comuns a dois dos idiomas mais falados no mundo; a outra é a colocação do latim em terceiro lugar, sem contar as expressões próprias do direito. É assim que surge a expressão habeas corpus e até o habeas data, hoje na Constituição brasileira.

  • A universidade, mudanças e impasses

    O começo do Governo Lula tem sido marcado pela recarga de debates, congressos e troca de opiniões, concernentes ao projeto de futuro do Brasil, ligado às grandes vertentes estratégicas em que a educação cobra o seu quinhão decisivo. O ministro Cristovam Buarque quer-se deliberadamente instigante, senão até provocador, no que considera como o recurso contra o pior risco na tarefa do Estado e das políticas públicas, neste front onde o essencial é manter-se a luta sem quartel contra a obsolescência. E não é maior o seu repto, num país ainda a viver as tensões do subdesenvolvimento. O nível de aceleração histórica em que vivemos evidencia uma multiplicidade de tempos para superar atrasos e ao mesmo tempo saltos ao futuro. Experimentamos o empuxe tecnológico e o arcaísmo que resiste à mesma inquietação de Darcy Ribeiro e Paulo Freire.